A Arte de Presentear


                                                                                            
" Homens e mulheres se dão presentes de maneira diferente. Não sei se isso é cultural, se é psicológico ou até biológico. É diferente. E falo tanto de dar quanto de receber. Pois se um presente brilha na mão de um homem na direção de uma mulher o corpo dela é pura emoção e se entreabe numa primavera de dedos e floração de sorrisos e beijos.

O homem, não. O homem em geral, dá a mulher a sensação de que errou o destinatário, que ele está abrindo uma caixa para outra pessoa. Ele não tem dedos ágeis, lindos, frágeis, de quem abre o cristal do afeto, a seda do carinho e os laços da paixão. Vai logo rasgando tudo, meio estabanado e, quando chega ao cerne da coisa, mal balbucia um adjetivo para, luminosa.


 Homem não recebe presente. Apenas constata que ganhou, olha-o de fora. Recebe sempre como se as lhe devessem algo. Falta ao homem aquela aura que só os santos e as mulheres assumem quando recebem uma graça dada.

Receber um presente é uma arte que as vezes tem que se aprender. No meu tempo de menino em Minas, por exemplo, não se abria presente na frente dos outros. A desculpa era sempre que seria falta de educação., Ou será que era medo de mostrar a própria emoção? Carregava-se o presente para o quarto ou ia-se abrir escondido, sozinho, proibindo ao doador a cena da revelação.



Se homens e mulheres recebem presentes diferentemente também escolhem e presenteiam de modo diverso.

A mulher é capaz de passar horas de passar dias procurando pelas galerias e vitrines. Ela reassume suas suas antigas virtualidades de coletora numa sociedade tribal e vai colhendo das árvores o alimento afetivo para sua família. Mas não me venham, por cauda disso, dizer que a mulher tem mais tempo e/ou foi treinada pra isso desde sempre. Há também homens, que não foram treinados para isso, não têm tempo, mas cumprem o mesmo ritual do prazenteiro doador. São pouco, é verdade, mas nem por isso são menos homens.


A emoção, dizem os machos empedernidos e os artistas formalisatas, é coisa de mulher. Dizem isso e e perde assim metade do que de bom tem a vida, que é se emocionar.
Sobre presentes se pode muito observar. Há quem sai e só consiga comprar presentes pra si mesmo. Roda, roda, roda nas vitrinis do seu ego, não consegue ver o outro. Assim, sai para presentear o outro e faz o outro presenteá-lo.


- Há pessoas que não se dão presente para não terem que se dar.
Nesse caso o presente é um escudo. Ambíguo escudo. Nesse caso o presente fala mudo.
- Pessoas que dão presentes como forma de se dar.
Nesse caso o presente é tudo. Duplo mundo. O próprio corpo a desembrulhar.


Os amantes sabem disso. Entre eles os presentes sinalizam a estrada da paixão. Para eles, o presente é a véspera do corpo. A primeira achega. O progressivo afeto. Pela sua constância, valor e progresso, se sabe quando o amor aumenta ou quando está em extinção.


Assim como da mesma forma o primeiro presente é sinal de que alguém desembarcou em nossa vida, também há presentes que são o último aceno na estação, a última víscera desembrulhada na dilacerada relação.


Mas o bom é quando o presente é um transbordamento do afeto. Uma duplicação do gesto. Um preenchimento de espaços no corpo, na casa do outro.


Desde modo, presentear é resistir, ocupar (claro, em a
lguns casos, é invadir). Mas quando vai disseminando presentes na campina do outro corpo, o amante, mais que agricultor, é construto, arquiteto, fundador. Está preenchendo o tempo e o espaço, está se expandindo num concreto amor.


Presentear, na verdade, é isso. É dizer: eu não vim apenas te ver, através do meu presente, eu vim permancer."




Affonso Romano de Sant' Anna
Coleção melhores crônicas